sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

OS JORNAIS - Rubem Braga

Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz:

– Chega! Houve um desastre de trem na França, um acidente de mina na Inglaterra, um surto de peste na Índia. Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, bola confusa, onde aconteceu unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. Veja por exemplo aqui: em um subúrbio, um sapateiro matou a mulher que o traía. Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que notícia. (...) O jornal nunca publica uma nota assim:
Anteontem, cerca de 21horas, na Rua Arlinda, no Méier, o sapateiro Augusto
Ramos, de 28 anos, casado com a senhora Deolinda Brito Ramos, de 23 anos de idades,
aproveitou-se de um momento em que sua consorte erguia os braços para segurar uma
lâmpada, para abraça-la alegremente, dando lhe beijos na garganta e na face, culminado em um beijo na orelha esquerda. Em vista disso, a senhora em questão voltou-se para seu marido, beijando-o longamente na boca e murmurando as seguintes palavras: ‘Meu amor’, ao que ele retorquiu: ‘Deolinda’.(...)”
A impressão que a gente tem, lendo jornais – continuou meu amigo – é que “lar’ é um local destinado principalmente à prática de “uxoricídio”. E dos bares, nem se fala.
Imagine isto: “Ontem, cerca de 10 horas da noite, o indivíduo Ananias Fonseca, de 28 anos, pedreiro, residente à Rua Chiquinha, sem número, no Encantado, entrou na bar Flor Mineira, à Rua Cruzeiro,524, em companhia de seu colega Pedro Amâncio de Araújo, residente no mesmo endereço. Ambas entregaram-se a fartas libações alcoólicas e já se dispunham a deixar o botequim quando apareceu Joça de tal, de residência ignorada, antigo conhecido dos dois pedreiros, e que também estava visivelmente alcoolizado. Dirigindo-se aos dois amigo a, Joça manifestou desejo de sentar-se à mesa, no que foi atendido. Passou então a pedir rodadas de conhaque, sendo servido pelo empregado do botequim, Joaquim Nunes. Depois de várias rodadas, Joca declarou que pagaria toda essa despesa. Ananias e Pedro protestaram, alegando que eles já estavam na mesa antes. Joca, entretanto, insistiu, seguindo-se uma disputa entre os três homens, que terminou com intervenção do referido empregado, que aceitou a nota que Joca lhe estendia.(...)”
E amigo: Se um repórter redigir essas duas notas e leva-las um secretário de redação, será chamado do louco. Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida...

In: BRAGA, Rubem. A borboleta amarela. Rio de Janeiro: Record, 1980, p. 74 - 76

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