sábado, 3 de março de 2012

Obra inédita de Saramago mergulha no mundo do escritor português

Juan Cruz
El PaísEm Madri (Espanha)



1953. Esse homem, José Saramago, era um trabalhador de muitos ofícios; e era, como seu avô, como seus pais, como os homens e como as mulheres de Azinhaga, o povoado português em que havia nascido em 1922, uma pessoa silenciosa e sutil, em cujo interior habitavam os dramas que vivia e aqueles que imaginava por trás das pequenas moradias ou dentro dos edifícios altos.
Já está em Lisboa, trabalha. E escreve; e esse caráter concentrado esconde um poeta, e um romancista. Depois será muito conhecido, chegará a prêmio Nobel, mas nesse momento acaba de terminar uma novela, seu primeiro livro, e o intitula "Claraboia". Leva-o a uma editora, deixa ali o manuscrito e volta a seu afazer lento e melancólico, no meio mais hostil possível para a convivência e para a imaginação: o Portugal da ditadura de Salazar. Dedicou-se a esperar uma resposta... e esta só chegou em 1989, quando ele estava envolvido em um novo livro, "O Evangelho segundo Jesus Cristo".
1989. Durante mais de 40 anos, Saramago, jornalista, escritor agora de sucesso, havia mantido um silêncio pertinaz, dedicado a seus diversos ofícios, mas marcado por aquele "silêncio doloroso, indelével e de décadas", como diz Pilar del Río, sua mulher, sua tradutora, a presidente da Fundação José Saramago, no prólogo do livro que vem à luz, por fim, em espanhol, português e outras línguas, pois o manuscrito apareceu finalmente, e exatamente nesse ano decisivo (para ele, para sua literatura) de 1989...
A editora à qual o tinha enviado descobriu o manuscrito em uma mudança; de maneira muito comovente, Pilar del Río, que o conheceu nessa época, conta no prólogo desta edição (publicada pela Caminho em Portugal, Alfaguara na Espanha) como Saramago recebeu a notícia: estava se barbeando, e com o rosto ainda ensaboado pegou o telefone que tocava. Ofereceram-se para editá-lo naquele momento, é claro, mas ele estava envolvido em outra história, nem sequer demonstrou interesse, já com o manuscrito na mão, em recuperar a iniciativa, dá-lo a outra editora...
"O Evangelho..." Estava escrevendo "O Evangelho segundo Jesus Cristo", um romance que, literária e politicamente, seria decisivo para José. O governo português o repudiou, decidiu impedir que participasse de um prêmio europeu porque o declarou no mínimo irreverente. Para Saramago aquele foi um duro golpe moral, que finalmente o levou a seu retiro do ruído mundano, com Pilar, em Tías, em Lanzarote...
Depois refez, ao longo dos anos, sua boa relação com seu país, e ali foram espalhadas suas cinzas, na Lisboa de "Claraboia", quando morreu no final da primavera de 2010. Já era, na hora de sua morte, depois de muitos anos de vida literária fértil e honrada, dedicada à literatura e ao compromisso, um dos escritores mais célebres do mundo, e dos mais requisitados.
"Claraboia". Mas o manuscrito não havia sido publicado. Pilar del Río diz, nesse prólogo do livro que aparece esta semana, que a literatura é muitas vezes um soco contra a morte. E por isso revive "Claraboia", como uma homenagem a Saramago e a sua literatura; o livro constitui, diz sua editora espanhola, Pilar Reyes, "um presságio do imenso escritor que Saramago seria"; é uma novela na qual "se percebe sua visão desacreditada do mundo". "Aqui há crítica social, crítica à família como instituição. Há um belo diálogo final entre o sapateiro e o jovem que chega", salienta Reyes. Referindo-se à identidade dos personagens, arquétipos de Saramago que de algum modo se conectam com o drama "História de uma Escada", que Antonio Buero Vallejo estava escrevendo contemporaneamente na Espanha, Pilar Reyes conta: "Arrisco-me a pensar que quando Saramago escreveu 'Claraboia' era como o jovem Abel, mas aspirava a ser como o velho e sábio sapateiro".
Lisboa. É uma novela da Lisboa pobre, habitada por "uma coleção de homens de poucas palavras, solitários, livres, que necessitam do encontro amoroso para romper, sempre de forma momentânea, sua forma concentrada e introvertida de estar no mundo". É o que escreve Pilar del Río, e ela sabe bem de que caráter está extraindo essas conclusões, do homem que foi seu companheiro de toda a vida. Pilar del Río diz no final do prólogo que deu à edição, tantos anos depois, que o manuscrito foi fonte da melancolia que manteve Saramago em silêncio antes de abordar, finalmente, uma carreira que o levou ao Nobel: "'Claraboia' é a porta de entrada para Saramago e será um descobrimento. Como se um círculo perfeito se fechasse. Como se a morte não existisse". Escrever para deter a morte, dizia Saramago; ler para continuar impedindo-a, pois.
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves



Extraído do: Uol Mídia Global