segunda-feira, 6 de junho de 2011

uma Reportagem!

06.06.2011

Em vilarejo japonês, a dor de abandonar a casa é maior que o medo da radiação

DER SPIEGEL
Cordula Meyer


Os níveis de contaminação no vilarejo japonês de Iitate, nas montanhas, são mais altos do que em algumas partes da zona de exclusão de Tchernobil. Sua evacuação tem sido um processo doloroso para os moradores – e muitos têm mais medo de mudar do que da radiação.
Por que ela não percebeu nada? É uma questão que preocupa Mieko Okubo. Por que ela não viu os sinais?
Se ela tivesse prestado mais atenção, talvez Fumio, seu sogro, ainda estivesse vivo hoje. Ele estaria sentado com ela à mesa, olhando para suas plantações de arroz através da porta aberta da varanda, como havia feito durante anos.
“Nós temos de deixar Iitate?”, perguntou Fumio em 11 de abril, quando a rede de televisão NHK reportou que o vilarejo provavelmente seria evacuado.
“Se eles dizem isso na televisão”, ela mesma respondeu prontamente.
“Nós temos mesmo que ir?”, perguntou Fumio de novo, e sua nora não tinha pensado nada sobre isso.
Mieko Okubo tem cabelos pretos finos e curtos, mãos miúdas. O cinzeiro à sua frente está cheio com pelo menos uma dúzia de bitucas de cigarro, longas e finas. “Como no mundo eu não consegui reconhecer o quão importante essa questão era para ele?”, ela se pergunta hoje.
Ela se culpa por não ter percebido as pequenas coisas: como ele se sentava o dia inteiro, todo encurvado e não ficava ereto como costumava ficar, que ela não percebeu quando ele não tocou no frango ou nos vegetais no jantar; e não reagiu quando ele parou de responder a suas perguntas.

Por que um homem de 102 anos precisa sofrer?
Na manhã seguinte, Mieko acordou às 5h para preparar o café da manhã, como sempre. Quando ela não ouviu nenhum barulho de seu sogro às 8h, ela chamou: “o café está na mesa”.
Então ela abriu a porta do quarto dele. Viu o tatami no chão, estendido de forma elaborada como se fosse um dia especial. Então viu seu sogro. Fumio Okubo havia se enforcado em seu quarto. Ele tinha 102 anos.
Okubo passou sua vida inteira em Iitate. A mulher com quem ele tinha se casado aos 17 morreu 80 anos depois. Ele fez sua primeira viagem para a capital, Tóquio, a 250 quilômetros dali, com um grupo de terceira idade. O que seria ganho ao evacuar um homem dessa idade?
Logo depois de sua morte, Mieko Okubo amaldiçoou a TEPCO, operadora da usina nuclear de Fukushima Daiichi, a companhia que matou seu sogro. Agora ela chora baixinho e pergunta: “por que um homem de 102 anos precisa sofrer?”
Nos dias seguintes às explosões dentro dos reatores de Fukushima, o vento carregou nuvens de radiação na direção noroeste, até as montanhas em volta de Iitate, cerca de 40 quilômetros de distância da usina. As pessoas que trabalhavam nas plantações no momento pouco sabiam dos perigos no céu. Ninguém as havia alertado.
Mais tarde, as autoridades mediram níveis de radiação de até 45 microsieverts por hora em Iitate. Isto equivale a várias vezes o nível que levou à evacuação em Tchernobil. Nenhum especialista hoje questiona a decisão de evacuar o vilarejo.

Perda da sensação de segurança
Iitate é cercado por florestas de pinheiro e cedro japonês, as montanhas chegam a mil metros de altura. No verão, aventureiros armam suas barracas ao lado das águas limpas de um lago na montanha. Durante gerações, o povo da região trabalhou durou para sobreviver da terra. Para os fazendeiros e artesãos de Iitate, a perda não pode ser medida em microsieverts. Os moradores de Iitate estão perdendo seu lar, e uma sensação de segurança que nunca recuperarão.
Numa sala superlotada do piso térreo da prefeitura, uma equipe liderada pelo gerente de resposta a desastres Shuichi Sato está tentando organizar a mudança dos moradores locais. “Em 22 de abril, o governo em Tóquio anunciou que as pessoas de Iitate deveriam evacuar dentro de um mês. Mas eles não disseram nada sobre como isso deveria funcionar”, reclama Sato.
Ele e sua equipe passam a maior parte do tempo procurando apartamentos. Antes do desastre de Fukushima, havia pouco menos de 7 mil pessoas morando em Iitate; agora há cerca de 3 mil. E como as vítimas do terremoto e do tsunami, além dos moradores de outras partes das áreas restritas já receberam moradias de emergência, quase não há apartamentos disponíveis em toda a região.
Mulheres grávidas e famílias com crianças pequenas foram evacuadas num domingo há duas semanas, seguidas por famílias com crianças em idade escolar. Sato espera que todas as famílias com crianças deixem o local em breve. Os moradores remanescentes deverão deixar suas casas até o final de junho. Sato, que não tem o poder legal para obrigá-las a sair, diz: “esperamos que elas cooperem”.

De reunião em reunião
Um cordão da polícia balança em frente à entrada das escolas. O centro comunitário está fechado. O único supermercado na cidade continua aberto, embora algumas das prateleiras estejam vazias. Poucos trabalhadores da construção estão alargando uma parte de uma rua do vilarejo, embora logo ela não seja mais usada. Um sinal de imobiliária continua pregado na frente de uma casa de família nova e cinza: 8 milhões de yens (US$ 100 mil).
“Essas pessoas nasceram aqui. É seu lar”, diz Sato. “E nós não sabemos nem dizer quando elas poderão voltar.” Ele está usando um jaleco de cor suave com cartões de identidade pendurados num cordão azul em seu pescoço. Ele corre de uma reunião para a próxima, e mesmo assim consegue tempo para atender às cerimônias de despedida que estão sendo realizadas em todo o vilarejo.
Antes do desastre, Iitate havia enfrentado o mesmo destino que muitos vilarejos japoneses: seus jovens havia ido embora para as cidades, deixando os idosos para trás. Em resposta, a cidade organizou festivais de vizinhos, desenvolveu a carne bovina local para se tornar uma marca reconhecida e criou mais empregos para jovens.
Iitate foi recentemente admitido numa associação dos mais belos vilarejos japoneses. O lema da cidade é “Madei”, ou “Ser Consciente”, e seu símbolo mostra duas mãos carregando um coração. Os moradores locais não trancam suas portas à noite.
Agora a crise nuclear criou rugas profundas no rosto amigável do prefeito de Iitate, Norio Kanno. Seu cabelo está bagunçado e seu jaleco coberto de óleo. Quando Kanno é questionado para citar sua decisão mais difícil desde o início da crise, ele diz: “todos os dias desde então são os mais difíceis. Afinal, sou responsável por todos no vilarejo.”

Decidindo ficar
Como prefeito, Kanno trabalhou duro para convencer os jovens a ficarem em Iitate. Agora ele está furioso com o governo em Tóquio. “Eles dizem: desde que as pessoas estejam protegidas da radiação, tenham um telhado sobre suas cabeças e comida suficiente, tudo está bem”. Mas as pessoas em Iitate sentem-se conectadas a suas casas e ao vilarejo que chamam de lar, diz eel. “A TEPCO é responsável pela perda deles”, diz o prefeito.
O governo japonês está aparentemente ansioso para evitar que essa raiva chegue aos ouvidos públicos. Durante a entrevista, um funcionário do poderoso Ministério da Economia, Comércio e Indústria (METI) apareceu de repente. Kanno ficou em silêncio no meio de uma sentença, e depois foi tirado dali pelo homem do METI.
Mas o METI não pode silenciar todos em Iitate. Kayoko e Hideyoshi Hasegawa, por exemplo, fizeram suas vidas como criadores de gado leiteiro. As pastagens brilham sob a névoa às 5h15 da manhã, enquanto Hideyoshi enrola feno numa grande bola, coloca-a num carrinho de mão e a distribui para suas 24 vacas. Os animais estão magros, agora que não têm recebido ração concentrada há algum tempo.
A mulher de Hideyoshi lava cuidadosamente cada teta das vagas com um pano limpo e água quente, e então às conecta à máquina de ordenha. Depois que as vacas são ordenhadas, ela simplesmente abre a torneira e deixa o leite fresco fluir para o dreno. “As vacas usam seus próprios corpos para produzirem mais leite, diz ela, com lágrimas nos olhos. “E então jogamos tudo fora.”
Com a radiação tóxica pairando no celeiro e em seus pastos, os Hasegawa não podem vender o leite. Agora eles esperam ser capazes de pelo menos encontrar alguém para matar suas vacas. “Então alguém as matará para nós. Nós mesmos matarmos e enterrarmos seria demais para nós”, diz Kayoko.

Poucos motivos para ter esperança
Uma de suas filhas encontrou um apartamento de dois quartos para o casal na cidade de Fukushima. Hideyoshi Hasegawa planeja visitar a fazenda uma vez por semana para cuidar das coisas. Ele espera que a família seja capaz de retornar depois de dois anos, embora tenham poucos motivos para ter esperança. O césio 137 nas terras da fazenda têm uma meia vida de 30 anos.
O pai de Hideyoshi Hasegawa plantou um jardim de bonsai na fazenda da família, completo com um lago para carpas. O homem de 84 anos sobe numa escada dobrável para podar a próxima árvore. “Não deixarei este lugar”, diz ele, “nem mesmo se ameaçarem me matar”.
Ele pretende seguir o caminho dos 107 moradores do lar de idosos de Iitate. O prefeito conseguiu permissão para que eles ficassem. Ele argumentou que os idosos mal precisam sair de casa, que eles estão bem protegidos da radiação dentro do prédio e que removê-los à força de seu ambiente os deixaria doentes imediatamente. As enfermeiras e funcionários do asilo terão de viajar para o que se tornará uma cidade fantasma. Para qualquer outra pessoa que decidir ficar, o motorista do caminhão de leite continuará levando os suprimentos básicos para o vilarejo uma vez por semana.
O asilo foi construído de acordo com “Madei”, com um custo de mais de 20 milhões de euros. Ele é aquecido com bolinhas de madeira, o que supostamente é bom para o meio ambiente e para o futuro.
Yukie Niigawa, de 29 anos, via um futuro para seus filhos em Iitate. Ela está segurando sua filha pequena, Kurumi, nos braços. A menina nasceu em 17 de março, seis dias depois do terremoto. Niigawa ainda está lá com seus quatro filhos porque ainda está se recuperando do parto. Sandálias Croc coloridas estão alinhadas perto das sandálias da Hello Kitty de Niigawa na entrada de seu apartamento.

Perder o lar
O nível de radiação é alto até mesmo em sua sala de estar: dois microsieverts por hora, mais alto do que em muitas partes da área restrita. A agulha do contador Geiger levanta rápido para oito microsieverts do lado de fora. Niigawa só deixa seus filhos saírem de casa uma hora por dia – e só com botas, chapéus e máscaras. Ela é uma mãe solteira.
Depois de procurar na internet, Niigawa encontrou uma casa pequena para sua família na cidade de Fukushima. O governo pagará o aluguel dos refugiados da radiação.
Mas o que ela fará lá? Até agora, Niigawa sobrevivia alugando as plantações de arroz da família para agricultores locais. Alguns pagavam em yens enquanto outros pagavam em arroz. Mas agora, quando a mãe solteira coloca seus filhos na cama à noite, ela costuma ficar acordada pensando em como alimentará seus filhos. Ela já guardou as certidões de nascimento e o álbum de fotografias das crianças numa caixa. Que também contém uma placa de madeira em homenagem a seu pai, que morreu em janeiro. “Nós não sabemos se voltaremos para cá”, diz ela.
Vinte anos depois de Tchernobil, a ONU publicou um relatório amplo sobre a saúde dos moradores retirados da área de restrição de lá. De acordo com o relatório, as pessoas ficaram traumatizadas pela perda de suas casas e pelo medo dos danos da radiação. Acreditando que estão fadados a morrer, muitos bebem e fumam em excesso.
Trabalhadores da organização de ajuda Heart Rescue estão fazendo uma pausa num estacionamento na prefeitura, usando macacões de proteção e máscaras. Preocupados com as pessoas que estão atrás da zona de evacuação, eles andam pelos vilarejos vazios e questionam todas as pessoas que encontram. Eles perguntam sobre sua ansiedade, acessos de choro, álcool e pensamentos suicidas.

Iitate está esperando
Muitas pessoas exibem sinais de síndrome do estresse pós-traumático, diz Bansho Miura. “Especialmente os agricultores jovens. Eles não sabem para onde irão”. Alguns, diz ele, haviam adotado a produção orgânica, mas agora provavelmente nunca venderão produtos orgânicos novamente.
Mieko Okubo, a mulher que perdeu o sogro, está tentando continuar. Ela tenta lutar contra o remorso. Mais bitucas de cigarro se acumularam em seu cinzeiro. Ela diz que queria largar o cigarro. “Agora provavelmente nunca o farei”, acrescenta.
Seu marido foi diagnosticado com câncer no pâncreas em outubro passado. Quando o tsunami chegou, ela foi visitá-lo num hospital na costa. Ela viu a onda chegar, e diz que não há palavras para descrever o que viu depois.
Depois daquilo, seu marido foi transferido para o hospital em Niigata, a quatro horas de carro de Iitate. Como resultado, ela não o visita mais com tanta frequência.
Toda vez que ela anda no hospital agora, desliga uma chave em sua cabeça. Seu marido não sabe de nada sobre a evacuação de seu vilarejo e sobre a morte de seu pai. Ela não quer tornar seus últimos dias ainda piores.
Em vez disso, ela fala sobre coisas que não existem mais. Seu marido ainda acredita que Iitate está esperando por ele.

Tradução: Eloise De Vylder

Extraída: UOL Mídia Global